Democracia, Diversidade, Diferença e Desigualdades - Políticas Sociais, Cidadania e Justiça

Democracia, Diversidade, Diferença e Desigualdades - Políticas Sociais, Cidadania e Justiça
        Como parte do aprofundamento dos debates sobre as questões democráticas, a proposta desta linha é ampliar o espaço de reflexão e discussão sobre as intrínsecas relações entre democracia, diversidade, diferença, desigualdades, políticas sociais, cidadania e justiça, que, no entanto, não são sempre lineares e coerentes, dependendo dos contextos históricos e das distintas concepções, atores, interesses, recursos e procedimentos que interagem em processos complexos, e muitas vezes contraditórios e conflituosos, de adequação entre meios e fins. O que é uma sociedade justa? O que as formas, ideias, conteúdos e práticas presentes nas políticas sociais revelam sobre a sociedade? Que noções vieram se consolidando, de forma coerente ou contraditória, com o amadurecimento dos distintos sistemas de proteção social? O que sugerem as análises empíricas e teóricas? O debate é rico em abordagens e variáveis a partir das quais conduzir as argumentações. Em que medida nos afastamos, no Brasil, da clássica concepção de “cidadania regulada”? Qual o grau de dependência das políticas sociais – e da cidadania, por extensão – quanto à organização do mercado de trabalho? Como as diversas políticas sociais definem, reproduzem, criam, enraízam e/ou transformam a cidadania (é concedida, mediada, liberal, nova e democrática, de cima para baixo, de baixo para cima)? Temos caminhado rumo a uma sociedade mais justa? Em que sentido? Através de políticas mais universalistas e/ou focalizadas? Da busca por garantir igualdade de oportunidades e/ou de resultados, redistribuição, reparação e/ou reconhecimento? Como e por que as diversas políticas sociais facilitam, dificultam, ampliam, limitam e/ou comprometem o acesso de grupos e indivíduos a distintos direitos? Que fatores e atores, singulares ou coletivos, institucionais ou não, intervêm sobre a formulação e implementação de políticas sociais, conduzindo a diferentes resultados para as questões que aparecem na agenda pública, fortalecendo e/ou enfraquecendo certas concepções e usufruto da cidadania e da justiça, bem como projetos políticos e atores que os sustentam? Para incitar tais discussões, o grupo se propõe a discutir trabalhos teóricos, positivos e normativos, bem como estudos históricos e empíricos, de caso e comparativos, baseados em abordagens e metodologias consagradas ou originais, sobre como as políticas sociais contribuem ou não para criar, assegurar, concretizar e estender direitos, ampliando ou não a cidadania para grupos e indivíduos, assim como para difundir, corroborar ou diluir princípios diferenciados de justiça (socioeconômica e cultural-simbólica).

            Justificativa:

 

           “Os direitos sociais estão sempre associados a certa forma política de se entender a cidadaniae, nesta perspectiva, torna-se mais relevante atentar para a contribuição que determinada política social traz em benefício da cidadaniado que analisá-la estritamente em função dos resultados monetários, ou qualquer outro tipo de valor físico que traz a seus beneficiários” (SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e Justiça – A Política Social na Ordem Brasileira, 1979: 84; grifos nossos).

        A sugestão de Wanderley Guilherme dos Santos, no trecho acima citado, é o mote da proposta de debate desta linha de pesquisa: analisar as políticas sociais em termos das formas políticas, nelas incorporadas, de se conceber a cidadania e a justiça. Tais concepções e princípios são fundamentais para a caracterização e diferenciação dos sistemas de proteção social que vieram se estruturando desde fins do século XIX na Europa e em outros países, e cujas transformações, sobretudo desde meados dos anos 1970, são importantes para a compreensão dos rumos das sociedades. Passada a onda neoliberal, e depois da crise econômica deflagrada em 2008 a partir dos Estados Unidos, que atingiu mais gravemente os países europeus, e simultaneamente com o ganho de importância e influência de países emergentes, como a China e o próprio Brasil, configura-se um contexto cujo futuro está em aberto, em que os antigos modelos de Welfare States, há décadas já questionados, passam por modificações e recebem novas críticas: 1) de feministas, para quem mesmo os modelos social-democratas, considerados mais libertadores – ou “desmercadorizantes”, na conceituação de Esping-Andresen (1990) –, ao ampliarem direitos sociais, inclusive para as mulheres, restringem a elas paradoxalmente direitos civis, como o de ir e vir, no momento de dar a luz, ou o de escolha do tipo de parto que preferem; 2) de pensadores de uma esquerda conservadora, para quem políticas e benefícios sociais que permitam às pessoas viverem mais livres do trabalho assalariado, sem a necessidade de inserção no mercado formal de trabalho – políticas estas, por outro lado, muitas vezes aplaudidas como mais “desmercadorizantes”! –, são prejudiciais à cidadania de uma parcela da população, considerados “inúteis”, “desfiliados”, “sub-cidadãos” (Castel, 2005); 3) de pensadores de uma esquerda progressista, de outro lado, como os defensores de uma renda básica de cidadania, para quem uma série de políticas implementadas em países europeus (e também no Brasil, como é o caso do programa Bolsa Família), ao exigirem contrapartidas de seus beneficiários, sobretudo quando na forma de trabalho, comprometem o princípio vital da incondicionalidade dos direitos de cidadania, e passam a ser caracterizadas como práticas de “workfare” (em que o trabalho se torna uma obrigação mesmo quando não se estabelece o vínculo empregatício, com salário e outros direitos trabalhistas), e não mais como políticas de “welfare”; 4) de pensadores que ficaram famosos pelas recentes discussões em torno do tema do “reconhecimento”, para quem políticas sociais que visam a combater injustiças nas esferas econômica e social muitas vezes acabam por reforçar injustiças na esfera simbólico-cultural (Fraser); 5) dos críticos das políticas de identidade, para quem políticas focadas em grupos específicos, minoritários, mesmo que na maior parte das vezes discriminados, e por isso requerentes de práticas de reparação, acabam por (gerar novas ou) fixar hierarquias e desigualdades, inviabilizando princípios de justiça social que levem em consideração as escolhas e autonomia individuais, ao mesmo tempo, pois, comprometendo as liberdades e direitos civis de cidadania (Butler); 6) de teóricos da justiça, da cidadania e da democracia, de distintas correntes político-ideológicas, que em suas reflexões normativas, frequentemente têm questionado a capacidade de conciliação e compatibilidade entre os tipos de direitos e princípios e procedimentos de justiça no que se refere às suas expectativas quanto à viabilização – através das ações, decisões, valores, crenças e visões de mundo incorporados nas políticas sociais – de sociedades mais justas, livres, igualitárias – ou equitativas – e democráticas, para indivíduos e grupos que têm interesses, opiniões, valores e vontades diferentes (Sen, Rawls).

    Estas, dentre outras questões e discussões, são de interesse recente e crescente dentro das Ciências Sociais e envolvem, cotidianamente, os debates, conflitos e disputas, as decisões que são tomadas (das mais simples às mais complexas), as leis, regulamentações, regras, procedimentos, estratégias, rotinas e perfis de atuação e operacionalização adotados nos processos de formulação e implementação das mais diversas políticas sociais.

        Daí porque, também, os questionamentos e discussões acima mencionados podem – e devem – ser enriquecidos, problematizados e aprofundados pelas contribuições de trabalhos empíricos, estudos de caso e comparativos, sobre as políticas sociais e que tenham como justificativa, interesse e questão de pesquisa os temas da cidadania e da justiça. Quanto a isso, as práticas e experiências recentes (algumas inovadoras) de políticas sociais da América Latina e do Brasil, especialmente, que só mais tardiamente (em relação aos países desenvolvidos) vêm dando passos mais significativos para a consolidação de seu sistema de proteção social, têm sido um rico laboratório de reflexão e pesquisa – e também de análises inovadoras, a beneficiarem e serem beneficiadas pelas discussões teóricas. Tal é o caso, por exemplo, 1) das avaliações sobre as condicionalidades ou contrapartidas exigidas dos beneficiários da transferência de renda do Programa Bolsa Família, vistas, por alguns autores e em certos casos, como constrangedoras da incondicionalidade dos direitos de cidadania, e por outros, como fortalecedoras de direitos sociais à educação e à saúde e, portanto, da cidadania. Também é o caso 2) de políticas de cotas para negros e indígenas para ingresso em universidades e acesso à educação de nível superior, consideradas por alguns como procedimentos que ferem princípios universais e igualitários de cidadania e meritocráticos de justiça, e por outros, ao contrário, como mecanismos seletivos que fortalecem os mesmos princípios universais e igualitários de cidadania, embasados não em critérios meritocráticos, mas no princípio da igualdade de resultados dos mecanismos de promoção da justiça social, em contraposição ao da igualdade de oportunidades (Lavinas). É ainda o caso 3) das intervenções do poder judiciário exigindo do Estado o cumprimento de ações que garantam o direito à saúde de cidadãos que movem processos individuais a fim de obterem gratuitamente medicamentos ou procedimentos médicos de alto custo do poder público, com isso modificando os resultados de disputas e decisões sobre alocação de recursos e prioridades definidas pelos formuladores (mais ou menos legítimos) das políticas de saúde, que implicam em alterações dos princípios de cidadania e justiça incorporados nessas políticas por tais atores e definições – garantia de direitos e fatias iguais para necessidades diferentes? Priorização de direitos individuais ou coletivos? São, finalmente, os casos 4) das formas de partilha de recursos num Estado federativo como o brasileiro, em que as exigências e/ou mecanismos de incentivo definidos em políticas federais para a distribuição de recursos para estados e municípios pressupõem certas concepções de justiça: distribuição igualitária, proporcional à população?, ou de acordo com as condições socioeconômicas, favorecendo as localidades mais pobres?, ou de acordo com as capacidades locais de infraestrutura (material e humana) já instaladas, privilegiando as localidades que priorizaram – ou tiveram condições para – realizar mais investimentos?  Tais critérios de justiça, embutidos nos procedimentos, estratégias e mecanismos de priorização nas partilhas de recursos das políticas têm implicações sobre o acesso a direitos e usufruto da cidadania por indivíduos e grupos sociais dentro de um mesmo país, entre os quais pode se estabelecer – e frequentemente isso acontece –, por conta da ação pública, desigualdades que (re)criam ou (re)produzem “sub-cidadãos”, cidadãos “de segunda categoria” ou “não-cidadãos”.

       Enfim, estes são apenas alguns exemplos de observações, questionamentos e análises possíveis, que demonstram e justificam a necessidade, relevância, contemporaneidade potencialidades dos debates a serem movidos e aprofundados pelo grupo.

        Vale lembrar, ainda, que a formulação e implementação de políticas públicas são processos decisórios tensos, em que não apenas recursos e desenhos institucionais estão em disputa, mas também os projetos políticos e, com eles, diferentes percepções sobre os problemas a serem enfrentados e sobre as formas de lidar com eles e aplacá-los. Em outras palavras, as discussões e disputas, permanentemente conduzidas nos processos de formulação e implementação de políticas públicas, por atores sociais com distintos interesses e visões de mundo, expressam, pois, diferentes valores e formas políticas de concepção empírica e normativa da sociedade. Dentre outras, são relevantes, pelo que revelam sobre a sociedade, as formas de concepção da cidadania e da justiça, incorporadas nas metas, objetivos e procedimentos operacionais das políticas. De modo recíproco, as ideias, valores e concepções sobre o que é melhor, ou pior, bom e ruim, certo ou errado, ético ou antiético, justo e injusto, mais justo ou menos injusto, transitam entre sociedade e Estado, de tal modo que se fazem presentes nas políticas do começo ao fim, isto é, desde a formulação e tomada de decisões, passando pelos processos de implementação, operacionalização, treinamento, adaptação, modificação, monitoramento e rotinização, aos seus efeitos e impactos; e podem, assim, ser modificadas ao longo desta cadeia, ou “ciclo”, que não é uma via de mão única.

        A edificação dos Estados de Bem Estar Social esteve historicamente relacionada, na Europa e em outros países do mundo, à tentativa de responder, sob o capitalismo, às demandas por mais igualdade e segurança. As respostas dadas pelos diferentes países variaram muito, e foram correspondentes não só às especificidades históricas e político-institucionais de cada caso, mas, de acordo com elas, também a concepções de justiça e cidadania que se evidenciaram nas experiências implementadas (DRAIBE, 1990). Foi, pois, de acordo com o sentido e as características destas respostas que alguns autores procuraram classificar os Welfare States (TITMUS, 1963, ASCOLI, 1984, ESPING-ANDERSEN, 1990, os mais conhecidos).

        No caso brasileiro, a organização do Estado nos anos 1930 e o início da estruturação de políticas sociais, destinadas, em princípio, a atender indivíduos pertencentes a categorias profissionais regulamentadas pelo Estado e que participassem de sindicatos públicos também reconhecidos pelo Estado (SANTOS, 1979), significou um tipo de intervenção estatal que, embora conferisse mais segurança aos cidadãos diante dos infortúnios da vida, não modificava a estratificação social “pré-existente” à intervenção; pelo contrário, a reafirmava, na medida em que incorporava nas políticas sociais, pelo requisito de contribuições prévias, o esquema de desigualdade social e ocupacional da época. Foi essa análise que permitiu a Wanderley Guilherme dos Santos perceber que a cidadania, no Brasil, por ele então denominada “regulada”, era restrita e legalmente excludente.

       Condizente com esta, análise posterior sobre o sistema de proteção social brasileiro, realizada por Sônia Draibe (1989), identificou uma aproximação de nosso “Welfare State” com o modelo conservador ou meritocrático-particularista, que parte da premissa de que cada um deve alcançar o seu sustento com base no próprio trabalho, no mérito e capacidades individuais.

        De lá para cá, as políticas sociais e a cidadania no Brasil se modificaram. Ao mesmo tempo em que novas camadas e grupos sociais e profissionais foram gradativamente incorporados à cidadania social, fazendo jus a direitos, também as políticas sociais criaram novos benefícios e serviços destinados à população, no processo de amadurecimento e consolidação de nosso sistema de proteção social.

       A partir dos anos 1990, o Brasil veio passando por processos distintos e nem sempre coerentes no que se refere aos rumos das políticas sociais. Ao mesmo tempo em que, de um lado, fruto das lutas pela redemocratização pós ditadura militar, a Constituição de 1988 representou um marco legal importante, ao estabelecer a saúde, previdência e assistência social como direitos e pilares do sistema de seguridade social, por outro, tentativas de submeter as políticas sociais às diretrizes macroeconômicas (afinadas com os ditames neoliberais à época em voga) sugeriam a “privatização”, focalização, e redução das políticas sociais a mínimos e emergenciais (COHN, 1999).

       Ao mesmo tempo, um dos aspectos pelos quais os Welfare States vieram sendo criticados, desde meados dos anos 1970, se refere à sua excessiva centralização e “autoritarismo”, incutidos em políticas que dariam pouca margem à expressão das liberdades individuais e ao reconhecimento das diferenças entre grupos sociais e das especificidades locais. O deslocamento de ênfase da preocupação com a redistribuição nas políticas sociais, para aquela com o reconhecimento, pode levar ao abandono de políticas que visam a combater a injustiça na esfera socioeconômica (em prol da igualdade) e, na busca por políticas que garantam os direitos de minorias, dirigidas a grupos sociais específicos, ao reforço de políticas do tipo workfare, em que contrapartidas são exigidas em troca de benefícios sociais, comprometendo o caráter fundamentalmente universal e incondicional das políticas que visam a garantir direitos de cidadania. No Brasil, a importância deste debate se refere às discussões – e ambivalências – em torno dos programas de transferência de renda que ganharam força no cenário nacional e proeminência no nosso sistema de proteção social desde meados dos anos 1990 (SILVA, 2009). A priorização do combate a um tipo de injustiça – sócioeconômica ou simbólico-cultural – pode dar margem ao avanço de desigualdades e ao comprometimento da igualdade de cidadania. Quais rumos estão sendo seguidos pelas políticas sociais brasileiras e quais as suas consequências para o aprofundamento da cidadania e da justiça em nosso país?

       Conforme sugere Kerstenetzky (2006), as formas de se combater as desigualdades, através de políticas universalistas e/ou focalizadas, não podem ser desarticuladas das noções de justiça que não são automática e essencialmente vinculadas a cada um destes tipos de ação estatal. Focalização não significa, sempre, eficiência, nem universalização é equivalente a equidade. Concepções fina ou espessa de justiça podem ser atreladas a mecanismos de ação focalizados ou universais.

       Por isso, para entender as trajetórias e rumos das políticas sociais contemporaneamente, parece válido e interessante analisá-las a partir das concepções e efeitos que têm em termos de cidadania e justiça.