Das Ruas às Urnas, das Ideias às Ações - Comportamento Político, Políticas e Percepções Públicas

Das Ruas às Urnas, das Ideias às Ações - Comportamento Político, Políticas e Percepções Públicas

Desde junho de 2013, passando pelas eleições de 2014 e 2016, a Operação Lava Jato, a crise econômica e o aumento do desemprego no Brasil, o impeachment da presidenta Dilma, o acirramento do conflito político e as indefinições do cenário eleitoral de 2018 indicam que uma série de instabilidades e incertezas políticas, institucionais, simbólicas, econômicas e sociais têm marcado a experiência democrática brasileira recente.

Como os cidadãos brasileiros veem e participam desse processo? Nas redes sociais, nas ruas e nas eleições, discussões sobre a crise e sua gestão, sobre as responsabilidades do Estado e do governo na condução das políticas públicas que afetam a vida individual e coletiva e sobre como a corrupção afeta o desenvolvimento da democracia brasileira parecem sugerir uma sociedade atenta às questões socialmente prioritárias para o país.

Resultados do Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB) - surveynacional pós-eleitoral realizado pelo CESOP/UNICAMP desde 2002 - mostram que, no ano de 2014, a maioria dos cidadãos considerava que o governo federal gastava pouco em políticas de saúde, educação, salário-desemprego, aposentadoria e programas sociais. Mostram ainda que a percepção majoritária de que o governo gasta menos do que deveria nessas políticas aumentou entre 2010 e 2014. No mesmo sentido, tendo sido a demanda por melhoria de serviços públicos uma das principais bandeiras das jornadas de 2013, ainda segundo os resultados longitudinais do ESEB, as avaliações que os cidadãos fazem dos serviços e políticas públicas (bem como das instituições representativas) pioraram entre 2010 e 2014. Em síntese, tais dados sugerem, diante de tal percepção negativa sobre a qualidade dos serviços e políticas, uma disposição dos cidadãos a demandar melhorias que atentem aos seus interesses. Não obstante, resultados do ESEB para 2014 mostraram que 50,9% concordavam, muito ou pouco, que o governo deveria limitar os gastos com serviços públicos para reduzir impostos.

Como explicar esses posicionamentos contraditórios à primeira vista? Seja através da análise de resultados de pesquisas de opinião, seja através da observação de mobilizações nas ruas e de posicionamentos e debates nas redes sociais, o cenário aponta para as polarizações que têm marcado a opinião pública brasileira sobre o desenvolvimento social no Brasil recente. Também em 2015 e 2016, milhares de manifestantes ocuparam e pintaram de verde, amarelo e vermelho as ruas em várias cidades brasileiras, ora protestando contra a corrupção, clamando pelo impeachment,ora protestando contra o golpe, clamando “Fora Temer”, em movimentos contraditórios que explicitam a heterogeneidade de visões e interesses, e também a dinâmica e acirramento do conflito político no Brasil, passados cerca de 30 anos da redemocratização. Ainda neste sentido, resultados do ESEB para 2014 também sugerem divisões nas opiniões e percepções dos brasileiros sobre como reduzir as desigualdades sociais no país, sobre o acesso a direitos por parte de grupos distintos, e também sobre quem deve ser o principal responsável por garantir o bem estar individual e coletivo - se os próprios indivíduos ou o Estado.

Para além desse debate e das mobilizações recentes, a descrença e o não reconhecimento por parte dos cidadãos brasileiros quanto aos seus representantes políticos para tratar de seus interesses e necessidades, fenômeno que não é exclusivo da democracia brasileira, mas de muitas democracias representativas atuais em diferentes partes do mundo, tem afastado os brasileiros das urnas, como mostram os elevados índices de abstenção e de votos inválidos nas últimas eleições municipais. Por mais que essa ausência nas urnas seja em si um recado da opinião pública para os políticos e governantes, ela tem repercussões importantes sobre a construção institucional e societal da democracia brasileira. Agravando esse cenário, resultados de pesquisas de opinião do ESEB para 2014 - e também do Latinobarômetro para 2015 - apontam que mais da metade dos entrevistados não têm o hábito de conversar sobre política.

É a esse debate sobre as percepções dos cidadão sobre a política, os governos, suas ações e políticas, e sobre a qualidade da democracia em suas várias dimensões que esta linha de pesquisa se dedica. Para tanto, busca, em especial:

  1. Analisar os diálogos e os conflitos cidadãos na esfera pública nas disputas por reconhecimento de suas demandas, necessidades, interesses e preferências em termos de políticas públicas e construção da política democrática. Além da discussão sobre os debates na arena societal, trata-se de analisar também as interações entre os cidadãos e as instituições políticas, e em específico, os efeitos das políticas públicas sobre as percepções dos cidadãos e vice-versa.
  2. Analisar se e de que modo os diferentes posicionamentos e clivagens sociais sobre as políticas públicas e sobre as instituições representativas, em particular, partidos e parlamentos, repercutem na arena eleitoral.

                Justificativa:

            Em junho de 2013, um protesto contra o aumento do preço das passagens de ônibus na cidade de São Paulo, organizado pelo “Movimento Passe Livre”, rapidamente se transformou em fenômeno político de grandes proporções. Difundido pelas redes sociais, o protesto rapidamente se transformou em uma explosão de manifestações populares ocupando as ruas de mais de 350 cidades brasileiras, transbordando em uma enorme expressão de insatisfações e indignações de diferentes setores da sociedade brasileira (por exemplo, estudantes universitários e secundaristas, indignados com a repressão policial ao movimento, ativistas de causas sociais diversas (LGBT, negros, índios), segmentos das classes alta, média alta e da nova classe média, punks, black-blocs, neointegralistas e organizações de extrema-direita). Com a pulverização das manifestações também se multiplicaram as bandeiras e demandas levantadas, referentes tanto a outros problemas cotidianos dos cidadãos das grandes cidades - saúde, educação, segurança, mobilidade, melhores condições de vida, por exemplo – como também contra a corrupção na política e, em consequência, repudiando partidos, políticos, sindicatos e a própria organização do sistema político brasileiro.

            Desde então, o noticiário político veio ganhando mais espaço na mídia brasileira, tanto nas grandes e tradicionais organizações, como em novos blogs e sites de mídias alternativas, que passaram a oferecer novos conteúdos e versões para os fatos e fenômenos que passaram a agitar a vida política brasileira, especialmente relativos às ações do Judiciário, cujos magistrados antes desconhecidos do grande público passaram a receber holofotes e a ter suas posições e ações acompanhadas pela mídia e pela população, com destaque para as várias operações da “Lava-Jato” e para as delações premiadas. O desejo por justiça e punição aos políticos corruptos que se evidenciaram em manifestações de apoio ao juiz federal Sérgio Moro contrasta, no entanto, com as repercussões contraditórias, seja na mídia, seja nas ruas, diante das diversas e polêmicas votações do Congresso Nacional, que culminaram, em 2016, com a aprovação do afastamento da presidenta Dilma Roussef, a cassação do mandato do deputado federal Eduardo Cunha - ora visto como heroi, ora como mafioso -, a aprovação da PEC 241 na Câmara dos deputados. Encaminhada para o Senado como PEC 55, ela estabelece uma série de barreiras e limites para o gasto público, inclusive o social, em prol de uma disciplina fiscal que supostamente vá equilibrar o orçamento público, mas cujos efeitos sociais, num contexto de crise econômica, baixo crescimento e ampliação do desemprego, levam a questionar a capacidade e legitimidade dos representantes eleitos de ouvirem as demandas das ruas e de atenderem aos interesses e prioridades dos cidadãos, quando estes, em sua maioria, conforme dados do ESEB de 2014, expressam descontentamento com os serviços e políticas públicas, que avaliam terem piorado nos últimos anos, e, portanto, demandam melhorias.

            Apercepção de descontentamento pode ser vista como reflexo do amadurecimento democrático no país, que teria feito com que os cidadãos passassem a se interessar mais por política e a estarem mais dispostos a lutarem pelos seus interesses e a não se contentarem com o mínimo. Daí uma possível interpretação de que a ocupação das ruas reflita maior engajamento político e posicionamento ativo de setores da sociedade na luta por seus interesses e direitos. No entanto, tais manifestações não foram homogêneas. Ao mesmo tempo em que há aqueles que, tendo sido beneficiados por uma série de políticas inclusivas, passaram a se perceber ouvidos e atendidos pelo Estado - e daí a usarem mais seu poder e voz na busca por seus interesses, há outros que, ao contrário, passaram a se sentir lesados por estas mesmas políticas, expressando sentimentos de indignação e descontentamento diante delas porque representariam, supostamente, restrições aos seus direitos e interesses sociais, políticos e econômicos (por exemplo, devido ao aumento de impostos e da dívida pública para financiamento das políticas redistributivas). Tais setores também foram às ruas, expuseram suas demandas e visões, mas tal explicitação do conflito, saudável à democracia, não raras vezes tem resultado em intolerância e violência, que leva a questionar, então, os rumos da democracia brasileira, seja quanto à sua qualidade, ao teor de seu debate, aos seus valores, quanto também à representatividade e responsividade dos políticos eleitos, ao funcionamento das suas diversas instituições e aos recados dados pelas eleições.

            Mas, quais as consequências da desconfiança para o comportamento político dos cidadãos? Enquanto nas velhas democracias a desconfiança estimulou os cidadãos a adotarem novas atitudes políticas e formas de participação na vida pública e a defenderem a reforma das instituições democráticas, nos países de democracia recente, como o Brasil, a desconfiança historicamente levou os cidadãos a afastarem-se ou a desinteressarem-se dos rumos da vida política. Não obstante, retomando o exemplo dos protestos de junho de 2013 no Brasil, quando falamos de seus motivos, mencionamos a importância do sentimento generalizado de indignação com a corrupção sistemática que afeta a democracia brasileira para a ocorrência do ativismo político e mobilização popular. Diante disso, analistas têm apontado para uma importante mudança na cultura política e nos padrões de mobilização política brasileira, sugerindo que formas de ação coletiva e protestos parecem hoje integradas ao funcionamento cotidiano da democracia, sem que isso aponte para um cenário de crise deste regime, mas para uma transformação da relação dos cidadãos com o Estado.

            Já em 2018, a condenação em segunda instância do ex-presidente Lula por corrupção passiva e a sua prisão, por determinação do juiz Sérgio Moro, têm levado a posicionamentos, manifestações e comportamentos polêmicos e apaixonados, seja de apoio, seja de repúdio às decisões tomadas, seja, também, quanto às estratégias e recursos de poder - materiais, humanos, simbólicos, midiáticos e/ou institucionais - mobilizados pelos distintos atores coletivos. Em cenário pré-eleitoral, a ocorrência de um atentado a balas contra ônibus da caravana conduzida pelo ex-presidente na região sul do país, o assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL no Rio de Janeiro, e o ataque com uma facada sofrido pelo presidenciável Jair Bolsonaro (PSL) durante caminhada em Juíz de Fora, Minas Gerais, em plena luz do dia, são indicadores claros de um declínio da democracia no Brasil, em que o custo da tolerância foi reduzido a tal ponto que ações violentas de tais magnitudes passaram a fazer parte dos procedimentos para lidar com os conflitos – acirrando-os com agressividade, como se fossem contê-los ou resolvê-los, ao invés de destacar as posições oponentes através de diálogo, argumentação e respeito à legitimidade de opiniões e interesses plurais e divergentes – às vésperas de eleições federais e estaduais, colocando em questão não só o funcionamento das instituições democráticas, como o acordo subjacente à existência do regime, que é a concordância com a democracia como principal valor a conduzir a lógica de funcionamento das relações políticas. Portanto, compreender como os cidadãos brasileiros percebem e interagem, entre si, com atores coletivos e institucionais, em termos de valores democráticos, é algo que tem se mostrado cada vez mais relevante, num contexto de acirramento do conflito e da intolerância. Não se trata apenas de suas percepções quanto à qualidade da democracia e da representação, da desconfiança em relação aos políticos e às instituições, mas das formas como veem o mundo e a política e os processos através dos quais formam suas opiniões, preferências e interesses, e também constroem e defendem recursos e estratégias de luta que pautam seu comportamento político também em termos atitudinais. Nestes processos, uma série de fatores entram como variáveis independentes, como o papel dos partidos, das mídias, das diversas formas e fontes de socialização, informação, comunicação e interação. O que tem feito dos brasileiros partidários, cada vez mais, de certosposicionamentos, partidos, politicos e políticas públicas?

Como demonstra estudo recente de César Zucco Jr. e David Samuels (2018), baseado nas séries históricas do Datafolha desde 1990, o partidarismo entre os brasileiros é um fenômeno marcante e fundamental para explicar os posicionamentos e comportamentos políticos em diversas instâncias. Conforme afirmam, é em torno do PT que se organiza o partidarismo brasileiro, isto é, o cerne do conflito político-partidário se dá entre petistas e antipetistas, sendo estes últimos o segundo maior grupo partidariamente identificado, ainda que formal e organizacionalmente não exista o partido "Anti-PT". Portanto, constatam quenão é verdade que metade (ou mais) da população brasileira não tenha preferências partidárias. Partidários e antipartidários, somados, sempre alcançaram cerca de 60% do eleitorado. "Da mesma forma que a grande maioria dos simpatizantes partidários no Brasil é petista, a grande maioria do antipartidários é antipetista. Na verdade, os antipetistas formam o segundo maior grupo de partidários no Brasil, perdendo apenas para os petistas. Embora os dados sejam mais escassos para antipartidarismo do que para partidarismo, os que existem indicam que o antipetismo evoluiu pari passu com o petismo desde a década de 1990. Se, no início, a racionalização para o antipetismo era o medo da 'baderna', a partir do início dos anos 2000 a justificava prevalente passou a ser corrupção. De forma bastante interessante, praticamente inexistem diferenças socioeconômicas claras entre petistas e antipetistas. O que os surveys permitem inferir é que os dois grupos divergem mais em relação a preferências por processos participativos e deliberativos, e apoio a sindicatos e outros aspectos 'processuais' da democracia do que em preferências 'substantivas'(grifo nosso).  Chama a atenção, ainda, no trabalho dos autores, que o PT desempenha, sim, a função clássica de formação, organização e canalização de interesses, algo que sustenta ou retroalimenta sua força político-partidária; no entanto, conforme os próprios autores reconhecem, a despeito destes efeitos recíprocos de causa e efeito, carece de comprovação - ou pelo menos de evidências sugestivas mais claras e convincentes - uma hipótese sobre a origem, direção e intensidade desta causalidade, ou seja, entre de um lado a preferência tal qual expressa partidariamente e, de outro, as preferências propriamente políticas, que, antes das siglas, expressam valores, princípios, visões de mundo e interesses em ordem de prioridade para os cidadãos. Embora difícil, responder a esta questão tem grande relevância para a compreensão do conflito e do comportamento político. Em termos concretos, experimentos realizados pelos autores demonstraram, por exemplo, que ao perguntarem para os entrevistados sua preferência diante de duas alternativas sobre determinadas políticas públicas razoavelmente obscuras, o fato de ser acrescentada a posição do PT e do PSDB sobre elas foi significativo para a definição das preferências. "A informação sobre a posição endossada pelos partidos fez com que partidários concordassem substancialmente mais com a posição do seu partido, em comparação com o grupo que não recebeu a informação. O efeito era praticamente idêntico para petistas e tucanos se nós indicássemos a posição de apenas um partido, ou de ambos. Isso sugere que simpatizantes do PSDB e do PT não só reconhecem seus partidos como atalho para formar suas próprias preferências, mas reconhecem o outro como um indicador negativo. Por fim, a atribuição das posições ao PT e PSDB não produz efeito sistemático nos não-partidários ou nos poucos partidários de outros partidos". 

Ora, se um partido forma e organiza preferências, conforme sugerem estes dados, num processo contínuo, o que leva, "antes", a partir de uma lógica dedutiva, à organização partidária? Tal pergunta mostra-se mais instigante e relevante, para o caso brasileiro, quando o intuito é compreender a formação das preferências aqui chamadas de "substantivas", ou "propriamente políticas", que se expressam, partidariamente, mas sem a organização partidária, isto é, no posicionamento anti-petista. A formulação de uma hipótese dedutiva nesta direção requer, ainda, uma confirmação indutiva a partir de dados empíricos. Os autores refutam, por insuficientes, as explicações óbvias de "aparelhamento" e "clientelismo", que dariam conta apenas das preferências dos petistas e após Lula assumir o governo federal em 2002, sendo que o PT já era recordista de simpatizantes antes disso, e voltou a ver tal taxa crescer depois do partido deixar o poder. Ainda no campo das preferências dos petistas, os autores encontraram "evidência quantitativa para a tese, já bastante difundida na literatura qualitativa, de que o partido cresceu, ao menos até 2002, acoplando-se a organizações da sociedade civil. Essa estratégia de 'mobilizar os organizados', que não é diferente do que ocorreu na origem dos partidos de massa europeus, permitiu que o PT obtivesse não apenas eleitores, como os demais grandes partidos brasileiros, mas também simpatizantes. É possível que essa estratégia tenha sido relegada para um segundo plano nos anos em que o partido governou o Brasil, seja por decisões estratégicas de seus dirigentes, seja pelas contradições inerentes a ser governo e tentar representar a sociedade civil ao mesmo tempo". 

Por uma via ou por outra, a organização partidária, fica claro, forma, organiza, mobiliza preferências. Porém, recoloca-se a questão: este tipo de explicação é capaz e suficiente para explicar as preferências "substantivas", "propriamente políticas" daqueles que se manifestam partidariamente como "anti-petistas"? E, de novo, como explicar o processo "anterior" de formação destas preferências, tanto entre petistas quanto entre anti-petistas? Buscar uma explicação razoavelmente convincente e embasada em evidências empíricas para esta questão requer um desenho investigativo comprometido especificamente com a sua resolução; embora a mineração das perguntas e variáveis que compõem os questionários dos surveys hoje disponíveis sobre as percepções públicas dos brasileiros jogue luz para a formulação de hipóteses neste sentido, qual seja, sobre suas preferências por determinadas concepções de políticas - que podem ser redistributivas, igualitárias, de reparação, de reconhecimento, de garantia de direitos de cidadania, universais, incondicionais, meritocráticas, liberais, progressistas, democráticas, conservadoras, multiculturais, transversais, etc., (em que, note-se, as vírgulas entre os termos citados podem significar "e" e/ou "ou" dependendo das múltiplas correlações possíveis que eventualmente se confirmem empiricamente entre as preferências possíveis expressas em termos destes tipos de políticas) - um desenho investigativo que dê conta do enfoque dado especificamente para a questão de pesquisa aqui enunciada requer um comprometimento intelectual, teórico e metodológico apropriado, para que as respostas oferecidas possam ser minimamente críveis e suficientes.

Voltando ao trabalho de Zucco Jr. e Samuels, baseado nas séries históricas do Datafolha, os autores encontraram diferenças claras entre petistas e anti-petistas quando questionados a avaliarem programas fortemente atrelados a governos do PT, como Bolsa-Família e cotas para universidades. Nestes casos, ainda que se possa buscar dedutivamente, por associação, alguma inferência sobre as preferências "substantivas", "propriamente políticas" dos brasileiros em termos de políticas redistributivas, de reparação, reconhecimento, a armadilha se refaz:  essas diferenças entre as preferências expressas por, partidariamente, petistas e anti-petistas, parecem, no entanto, "ser uma racionalização que segue a simpatia e antipatia existente, e não a causa dela [grifo nosso].  Em conjunto, os dados sugerem que é possível que a origem da simpatia e antipatia ao PT venha menos do autointeresse ou de preferências políticas fortes, e que derive, pelo menos em parte, da combinação de experiências pessoais no contato com o partido em combinação com características psicológicas inatas. Mas estas ainda são hipóteses que carecem de verificação", concluem os autores. 

A dificuldade de enfrentamento do problema é patente. Lavareda, seguindo orientação inovadora, mas pouco difundida no Brasil, buscou o recurso à neurociência para tentar explicar as causas das preferências políticas. Há estudos que sugerem, por exemplo, esta causa psicológica com base na associação entre, de um lado, características afetivas pessoais em que se sobressai o medo e a insegurança com, de outro, o apoio a políticas individualistas, de segurança baseadas na punição violenta, não só no encarceramento sem qualquer respeito a direitos humanos, como se observa com frequência nos presídios brasileiros, como na pena de morte, inclusive prescindindo de julgamento comprobatório definitivo. No cenário eleitoral de 2018, tais posicionamentos têm sido corriqueira e abertamente expostos pelo presidenciável Jair Bolsonaro, forte candidato no pleito majoritário, ocupando segundo lugar nas intenções de voto expressas por 26% dos eleitores, segundo pesquisa do Datafolha de 15/09/2018. Por outro lado, estudos de Loïc Wacquant indicam que o posicionamento dos cidadãos, em termos de políticas contra a criminalidade, têm apelo marcadamente cultural, em consonância com o "espírito da época" (zeitgeist, o conhecido termo em alemão): de forma coerente com as bases de origem e continuidade dos Estados de Bem-Estar Social europeus estaria uma percepção social sobre o crime, de modo que a ação do Estado em relação ao indivíduo que o praticou preconizava a sua ressocialização, numa concepção de que a responsabilidade pela criminalidade é social. Em contraste, mas na mesma direção, em outros tempos, recentes, a política de "tolerância zero", adotada em Nova Iorque, e a de encarceramento praticada e evidenciada no Estados Unidos, têm correspondido a uma percepção claramente distinta sobre a responsabilidade e solução a ser dada para o problema da criminalidade: respectivamente individual e excludente, que se observa, segundo o autor, nas "prisões da miséria", cujo fim seria simplesmente o de tirar de circulação os "inúteis e indesejáveis" para a nação - notavelmente, seriam a grande maioria de negros, pobres e imigrantes, em grade parte latinos, que correspondem ao contingente majoritário daqueles que ocupam os presídios norteamericanos.

Este mesmo tipo de estudo foi realizado por diversos autores na busca por compreender as bases de sustentação do Estados de Bem-Estar Social europeus, como Abram de Swaan, cujo estudo, que motivou programa de pesquisa de Elisa Reis no Brasil, mostrou a concordância, por parte das elites e classes mais abastadas na Europa, com políticas de redução da pobreza e das desigualdades, compreendidas como algo de que também se beneficiariam, por exemplo através do ganho de segurança pública, mas também devido a uma generalização do apoio à expansão da cidadania e da lógica dos direitos. No Brasil, segundo Elisa Reis, embora as elites concordassem com a redução da pobreza e, em princípio, apoiassem políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, foi se desenhando, mais recentemente, uma resistência das classes mais abastadas a uma série de políticas de caráter redistributivo, de reconhecimento e reparação, contestadas como privilégios a grupos minoritários – inclusive uma suposta elite do trabalho – que contrariariam o preceito da igualdade de cidadania, muito embora na maior parte das vezes impliquem em mecanismos de reforço aos princípios universais. Sob a percepção e contestação de políticas que implicariam na criação de direitos, configura-se, no entanto, a sua contraface, que é justamente a da preservação de privilégios e hierarquias sociais historicamente edificadas no país, e das quais as elites brasileiras não estão nada dispostas a abdicar, diferentemente das europeias. Com acabar com a pobreza todos concordam, mas desde que não com as desigualdades, conforme insistiu Elisa Reis. No cenário pós impeachment, a redução do gasto social tem, em alguma medida, respaldo na sociedade, ou pelo menos entre setores com capacidade de influenciar nos rumos das decisões políticas. Não se pode perder de vista que o programa que saiu vitorioso nas urnas em 2014 estava minimamente ancorado numa perspectiva de solidariedade social que se perdeu com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, explicitando o conflito entre visões pró e contra políticas sociais e de redução das desigualdades. O contraste entre os projetos – de priorização ou não da busca pela redução das desigualdades – se associa, no caso recente, à concordância ou não com a priorização dos valores e procedimentos democráticos como mecanismo e instância de luta por interesses e resolução de conflitos. Em síntese: democracia e desigualdades estão mais uma vez intercruzadas no ideário e nas práticas políticas, cotidianas, organizacionais, participativas e político-partidárias e eleitorais dos brasileiros, subdivididos em diversas categorizações que se distanciam ou sobrepõem. Como os diversos grupos de brasileiros veem a democracia, as desigualdades e as diversas políticas afeitas a elas, e como agem, se manifestam e se comportam politicamente diante delas e com respeito a elas? É a isso que esta linha de pesquisa se dedica a responder, com uma agenda que inclui análise de pesquisas de opinião já disponíveis, construção, aplicação e análise de novos surveys, realização de entrevistas qualitativas em profundidade, grupos focais, testes de painel e outros experimentos, além de estudos comparativos no tempo e entre grupos, regiões e países.