Cultura Política e Enfoque Cognitivo na Análise de Políticas Públicas

Teoria da Cultura Política, Enfoque Cognitivo na Análise de Políticas Públicas; Neoinstitucionalismo Histórico, Sociológico e Discursivo.

         A sociedade brasileira caracteriza-se pelo paradoxo da experiência democrática de, por um lado, dar apoio ao regime democrático e aos seus procedimentos e, por outro, apresentar majoritariamente posicionamentos e opiniões conservadoras no âmbito das relações sociais. A abordagem teórica da cultura política considera uma longa corrente de fatores em que estão presentes elementos do contexto atual do indivíduo, bem como características e elementos históricos advindos das suas experiências passadas adquiridas ao longo de um processo de socialização cumulativa, no qual os aspectos subjetivos têm papel significativo. O tratamento do peso dos valores e opiniões sobre assuntos do âmbito sociocultural, na avaliação dos brasileiros acerca das instituições do mundo da política, toma como referência dados do contexto mais recente e também elementos socioculturais do seu passado histórico. Para a cultura política, as escolhas políticas são produto da avaliação que os atores fazem do seu contexto e das orientações apreendidas durante o processo de socialização pelo qual passaram, em que diversas experiências incidiram.

          A abordagem da cultura política privilegia, em sua análise, os aspectos subjetivos das orientações políticas dos indivíduos. A noção de cultura política diz respeito ao universo dos valores e crenças e ao conjunto de atitudes e orientações presentes nas avaliações dos indivíduos sobre o processo político no qual estão inseridos.

          A lacuna entre a existência formal das instituições democráticas e a incorporação da democracia nas práticas cotidianas dos agentes políticos leva à suposição da existência de duas culturas políticas em disputa no interior do sistema político brasileiro (AVRITZER, 1995). Haveria um entrelaçamento de uma cultura política não-democrática com a institucionalidade democrática, em que as práticas que dominam não se caracterizam por ser exclusivamente democráticas ou completamente autoritárias. No tratamento do caso brasileiro parece igualmente importante considerar a ocorrência de eleições e a vigência de direitos assegurados por uma Constituição, como também destacar a análise da atitude dos sujeitos sociais com relação a esses direitos e o entendimento do motivo de a ação cotidiana de atores políticos relevantes, como governo, membros do judiciário, e até da polícia brasileira, não se orientarem pela normatividade existente (AVRITZER, 1995).

          O enfoque da cultura política não desconsidera o papel das instituições; porém tende a privilegiar nas explicações os fatores de ordem cultural, cujas mudanças, de longo prazo, seriam endógenas e substrato das mudanças institucionais. Ainda que as instituições interajam com a cultura política e possam, sim, ser difusoras de valores e definidoras de comportamento, interessa a esta linha de pesquisa identificar e analisar as origens e processos múltiplos que levam ao estabelecimento de posições e preferências políticas de grupos diversos. Neste sentido, aproxima-se da corrente neoinstitucionalista discursiva, que veio se formando e se fortalecendo recentemente conforme a virada construtivista nos estudos sobre representação e ideacional nos estudos sobre políticas públicas vieram questionando a insuficiência das demais vertentes neoinstitucionalistas, especialmente para explicar a mudança em termos endógenos. Trata-se, pois, de orientação apropriada e abordagem inovadora para dar conta das percepções e associações que os atores políticos fazem ao se posicionarem, se manifestarem e agirem quanto a questões normativas, como democracia e desigualdades, mas também quanto a questões concretas, como a avaliação de políticas públicas.

             Justificativa:

          Em consonância com a teoria da cultura política, o enfoque cognitivo de análise de políticas públicas rejeita tanto a premissa marxista de que o Estado seja tomado por uma classe que lhe imprima sua racionalidade quanto, também, a visão neoinstitucionalista tradicional, segundo a qual as instituições constituem a categoria analítica fundamental para explicar as políticas públicas e as burocracias os atores privilegiados na definição do seu desenho, sendo as principais responsáveis pelos seus resultados. Na verdade, os autores pertencentes a esta corrente tendem a realçar os processos internos e externos ao Estado, dos quais resultam as políticas públicas e a ação estatal, bem como o papel dos diversos atores envolvidos nestes processos. Sua contribuição, que de uma certa maneira enriquece a perspectiva neoinstitucional, consiste na ênfase sobre a necessidade de se integrar à dimensão das práticas a dimensão da representação, visto que elas são intimamente inter-relacionadas (MARQUES, 1997: 85).

          A premissa da abordagem cognitiva, segundo Muller e Jobert (1987), é a de que identidades são construídas socialmente e, deste modo, geram diferentes interpretações da realidade, conduzindo, portanto, a diferentes diagnósticos em relação aos problemas enfrentados pela sociedade, bem como à escolha de diferentes alternativas, instrumentos e estratégias para a intervenção prática sobre eles. Este é o papel que exercem fundamentalmente os profissionais no interior de setores da sociedade, como os gestores públicos.

            Os autores acreditam não somente que os diferentes atores sociais, segundo suas diferentes visões de mundo, têm influência sobre o que vêm a ser as políticas públicas como, de maneira recíproca, que estas políticas também têm efeitos sobre a sua constituição como atores sociais. Portanto, se há ideias, valores e discursos que estruturam as políticas e programas, esta dimensão cultural também é perpassada através das políticas para os atores nelas envolvidos (não só usuários ou beneficiários, mas os próprios operadores e agentes implementadores). Quanto a isso, esta abordagem não difere muito da neoinstitucionalista. Entretanto, os teóricos do “Estado em ação”, como também são chamados, acreditam, além disso, que as políticas públicas são também instrumentos para a formação de identidades coletivas. Ou seja, para eles, à medida que estas políticas são implementadas e se expandem, são produzidos e difundidos referenciais. Deste modo, se as políticas públicas são concebidas segundo um processo de disputa social, no qual ocorre a politização de atores, esta politização também pode ser desenvolvida como efeito das políticas públicas, através da formação de identidades (MULLER e JOBERT, 1987).

          Para a análise setorial, toda política pública é concebida a partir de uma representação do setor ao qual ela se refere, e de um conjunto de normas, organizações, técnicas e recursos de poder. Existem, segundo esta abordagem, três “chaves de análise” importantes para os estudos de políticas públicas: a relação global-setorial, o referencial (do setor e global) e os mediadores de políticas.

          “Para a análise setorial, o estabelecimento das hegemonias profissional e administrativa é uma condição básica para a existência e a implementação de uma determinada política, definindo os limites, as questões relevantes e os atores participantes dos processos políticos no interior do setor. Os sujeitos profissionais e administrativos dominantes modelam o setor à sua imagem e segundo seus interesses, dando a ele forma e conteúdo” (MARQUES, 1997: 85).

          O enfoque cognitivo preocupa-se com a dinâmica das relações sociais, com a importância do fator cultural para a reprodução de tais relações e, ainda, com as possibilidades de mudanças nestas relações, aí incluídas as de poder. Desta forma, uma das principais questões que este enfoque procura responder refere-se às relações entre as políticas públicas e a construção da ordem social nas sociedades modernas, complexas, fragmentadas, setorializadas (MULLER, 1990: 26).

          Assim, segundo o enfoque cognitivo, existe um conjunto de crenças e valores que constituem o assim chamado núcleo duro que guia todas as ações políticas. É este núcleo que é perceptível em todas as políticas formuladas por determinado governo, por exemplo. Portanto, mesmo que haja mudanças no sistema de operacionalização de políticas, que são elementos secundários, o núcleo de crenças e valores é o que não se altera, justamente porque é ele que constitui o alvo da disputa política.

          É possível dizer que este sistema de crenças e valores que dão sentido à ação política corresponde ao projeto político-social que a sustenta (por exemplo, projetos liberais, democráticos, etc.). É o projeto que se torna hegemônico na sociedade e que se reproduz (e com isso, ao mesmo tempo, se transforma) de várias maneiras, inclusive através das políticas públicas nas quais se faz presente. Portanto, ao considerar a manutenção do sistema de crenças e valores como instável e dinâmico, os autores do enfoque cognitivo acreditam que as políticas públicas são também instrumentos para a formação de identidades coletivas.

          Segundo Sabatier (1985), a possibilidade de mudança social deve-se a um processo de aprendizado com a experiência que ocorre tanto no interior mesmo de um sistema de crenças, seguindo a motivação de manter-se hegemônico, quanto entre diferentes sistemas de crenças, já que aqueles que não são hegemônicos procuram adaptar-se de modo a que saiam vitoriosos na disputa política.

          Acreditando que a realidade social se constrói num processo dinâmico, Sabatier propõe que, ao se analisar uma política pública, inicie-se pela identificação de um problema, alvo de políticas, mas que depois se leve em conta também os fatores externos, condições sócio-econômicas e legais que atravessam o processo de operacionalização de uma política, bem como o aprendizado que se tem com a experiência, fazendo com que elas, muitas vezes, desviem-se de suas formulações originais. Com base neste modelo conjugado das chamadas perspectivas "de baixo para cima" e "de cima para baixo", Sabatier oferece um arcabouço teórico-analítico que permite compreender a evolução e as mudanças nas políticas públicas em períodos de tempo maiores, ou seja, considerando a sociedade como uma totalidade (SABATIER, 1985).

          Com base nestas ideias, o enfoque cognitivo distancia-se das teorias estruturalistas, que supõem que os atores sociais são dados ex ante (determinados por condições materiais); ao contrário, defende a tese de que estes atores são construídos durante e através dos vários processos sociais que entrelaçam suas vidas.

         Da mesma forma como veem os atores como construções sociais, os autores desta perspectiva também veem o Estado como construção, ou seja, não possuindo uma dinâmica determinada essencialmente por estruturas burocráticas ou pelo conflito de classes, mas pela ação dos diferentes atores envolvidos na dinâmica de seu funcionamento.

          Devido a isso, Muller (1990) se opõe às visões em que as políticas públicas são vistas como frutos de uma estrutura burocrática-organizacional e tecnocrática, quando, antes, seu desenho e formulações estão diretamente relacionados a escolhas políticas.

          Enfim, é possível dizer que o enfoque cognitivo, em comparação com outros, tem a vantagem de reconhecer que o papel dos valores, crenças e ideias é de fundamental importância para a compreensão dos efeitos e resultados das políticas públicas, uma vez que são estruturantes de identidades, as quais são a base da ação política. Além disso, ao supor que o sistema de crenças perpassa a sociedade como um todo, organizando, inclusive, as relações Estado-sociedade, sem, no entanto, concebê-las como estáticas, o enfoque cognitivo é capaz de explicar as mudanças sociais e, ao mesmo tempo, os diferentes desenhos e formulações de políticas públicas que são direcionadas para um mesmo problema, assim como os variados resultados, efeitos e impactos destas políticas.

           De acordo com esta perspectiva teórica, são interesses de pesquisa da linha: o papel das ideias, valores e crenças para a compreensão dos significados, sentidos, efeitos e resultados das políticas públicas; interação entre os chamados três "i"s - ideias, interesses e instituições - na análise de políticas públicas; papeis e interações dos distintos atores, mais e menos formalizados, na formulação, implementação e nos efeitos/resultados das políticas públicas - em especial, o papel das baixas burocracias, de linha de frente ou do nível da rua, que operam as políticas lá na ponta -, mas também o papel dos partidos e governos partidários sobre as gestões e efeitos/resultados diferenciados das políticas; papel, compreensão e análise dos discursos e percepções de distintos atores que interferem sobre as políticas públicas; como classe, gênero e raça/etnia atravessam ou são alvo - ou não - das políticas públicas. Para tanto, o recurso a métodos mistos, que incluem entrevistas qualitativas e de longa duração, grupos focais, etnografia e observação participante, e também a realização de pesquisas de opinião pública, paineis e outros experimentos que buscam averiguar relações de causalidade são bem-vindos e complementares, além de análise documental, de legislação e material midiático. Alguns dos modelos analíticos de políticas públicas que correspondem aos interesses de pesquisa aqui priorizados tratam das coalizões de causa, das matrizes e comunidades epistêmicas, da análise de arenas e redes sociais.